"Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. Como passar para o outro lado? Às vezes ficava horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer. Qual nada! O arco-íris era teimoso! Dava uma aflição danada. Sabia que a mãe estava esperando por ela. Juntava, então, as saias entre as pernas tapando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por debaixo do angorô. Depois se apalpava toda. Lá estavam os seinhos, que começavam a crescer. Lá estava o púbis, bem plano, sem nenhuma saliência, a não ser os pelos. Ponciá sentia um alívio imenso. Continuava menina. Passara rápido, de um pulo só. Conseguira enganar o arco e não virara menino" (Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo, 2003).
Capa da 1ª edição. Editora Mazza.
Ponciá Vicêncio é uma das mais belas e difíceis histórias de nossa Literatura Brasileira Contemporânea. Ao ler a história nos deparamos com uma personagem forte, emotiva e de grande coração.
"Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão
chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o
barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos
vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas
mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas
terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue
aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se
entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns
conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia traçar
outros caminhos, inventar uma vida nova. E avançando sobre o futuro,
Ponciá partiu no trem do outro dia, pois tão cedo a máquina não voltaria
ao povoado. Nem tempo de se despedir do irmão teve. E agora, ali
deitada de olhos arregalados, penetrados no nada, perguntava-se se
valera a pena ter deixado a sua terra. O que acontecera com os sonhos
tão certos de uma vida melhor? Não eram somente sonhos, eram certezas!
Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera o contato
com os seus. E agora feito morta-viva, vivia" (Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo, 2003).
Ela sai de casa, no campo, ainda muito jovem, em busca de uma vida melhor na cidade grande, para onde, um dia planeja levar sua mãe, Maria Vicêncio, e seu irmão, Luandi José Vicêncio, já que seu pai e seu avô haviam passado para o outro lado da vida.
Lemos também a luta da população negra que, sendo descendentes de escravizados, conseguem ter forças para buscar alcançar seus sonhos.
Repleta de lirismos e recordações, Ponciá Vicêncio é uma daquelas histórias que lemos com o coração apertado em vários momentos, com o nó na garganta em outros e com um riso de alegria ao conhecer personagens tão determinadas, de tão grande amor aos laços familiares e à terra onde nasceram, ao barro de que sua história é moldada.
Imagem: http://www.pretaenerd.com.br/2018/05/olhos-dagua-multiplicidades-da.html
Sobre Ponciá Vicêncio, Maria José Somerlate Barbosa nos diz no posfácio da obra de Conceição Evaristo:
"Havia muito não lia um texto que captasse tão sinceramente os elos de ternura e afeição entre os personagens e que simultaneamente trabalhasse a linguagem de forma bastante poética, expressando tanto a ânsia de definir sua identidade num ambiente marcado pelas diferenças econômicas, sociais e raciais. Considero que, apenas nos contos de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Vidas secas de Graciliano Ramos, encontrei algo semelhante. É um romance que li de um só fôlego porque, além de me prender a atenção, me tomou pelos sentidos para percorrer com Ponciá os labirintos e as vias tortuosas da memória".
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